quarta-feira, 28 de maio de 2014

E de onde vem essa força?

Fiquei pensando como começar a nossa conversa de hoje, para que você se sinta em casa ao entrar nesse blog, e, queira fazer parte dele, devaneando comigo sobre o pensamento e os questionamentos de cura cotidianos. De início quero apresentar-lhes uma antiga amiga, hoje vamos chama-la de Dona Norma. Onde conheci? No ambulatório de mastologia (estou começando a crer que esse será o meu habitat natural). Há quanto tempo nos conhecemos? Ah, acho que há uma vida inteira...
O nosso primeiro contato foi assim: Dona Norma bateu timidamente na porta do consultório e entrou com um ar desconfiado e sapeca.  Parecia uma criança. Pude perceber que em suas mãos estavam alguns exames, provavelmente os de rotina. Tenho o hábito de tentar descobrir a queixa dos pacientes antes que eles possam me falar, porque assim, acredito que posso melhorar a minha habilidade de observação. Ao ver dona Norma tive certeza que ela estava ali apenas para os exames de seguimento (são exames que fazemos após o tratamento completo do câncer, apenas para nos certificarmos que está tudo correndo bem).  Para quebrar o silencio, tentei sorri-lhe acolhedoramente, e, perguntei:
- Bom dia, o que posso fazer pela senhora hoje?
Sem muito questionar, dona Norma retribui o sorriso, e falou:
- Não sei doutora, foi o outro médico que me mandou aqui. Terminei a minha décima segunda sessão de quimioterapia, e, parece que tem um novo nódulo na axila direita! - E sem muita cerimônia retirou o chapéu, e mostrou-me o couro cabeludo apenas com uma penugem sutil, delicada...
Foi a primeira “peça que Dona Norma me pregou”. Por um instante parei, e fiquei fitando-a nos olhos, queria entender o que se passava naquela cabeça, queria entender, suas certezas, sua fé na vida, seus medos. Ou os meus.  E, simultaneamente, queria ter um espelho em minha frente para perceber se estava conseguindo lançar o olhar angelical e curioso que eu desejava possuir naquele momento.
Conversei com Dona Norma por uns vinte minutos, nesse tempo ela me contou todas as dificuldades vivenciadas no tratamento. Sorrindo, ela me falou que algumas vezes pensou em desistir. Disse que perdeu a conta de quantas vezes olhava-se no espelho e não conseguia entender quem era aquela estranha a sua frente. E eu chocada e com toda experiência de um iniciante, tentei conforta-la falando do tratamento, mostrando que era possível lutar e ter esperança. É incrível como algumas vezes a gente tenta desenvolver uma empatia por alguém sem ao menos ter noção em que pensar. Hilária, a ousadia de principiante.
Até que ela no ápice da sua sabedoria, olhou para mim e falou:
- Não doutora, não estou falando dessa doença! Falo que não me reconhecia antes. Tinha uma vida atribulada. Tinha que acordar cedo, fazer comida, limpar a casa. Era uma loucura. Agora tenho mais tempo para mim. Doente consigo viver!
Espera... Para tudo! Vocês entenderam? Doente ela conseguia viver?! E saudável, fazia o que? Morria? Fiquei boquiaberta ao escutar aquelas declarações de dona Norma. Que inversão de valores é essa? O que vida mesmo? Quem em sã consciência começa a viver apenas depois que descobre que tem câncer? E o medo? E as dúvidas? E o desconhecido? Será que é tudo invenção de nossa mente? De onde vem essa fé na vida, ou, na morte? Religião? Cultura? Mecanismo de defesa psicológico?
Não sei ao certo como, mas, Dona Norma emanava uma energia tão positiva, que era de se fazer inveja. Mesmo desenvolvendo um novo tumor, não tinha qualquer foco metastático pelo corpo. Que processo de cura admirável é esse? Será que a vontade de viver é realmente o que se conta nesse momento? Recuso-me a acreditar que alguém queira morrer. Então, apenas o desejo não seria pouco?
Tenho a impressão que Dona norma desenvolveu um comando que sinalizou para todas as células que deveriam trabalhar adequadamente. Mas, se ela conseguiu desenvolver processo de cancerígeno é porque num instante passado ela conseguiu sinalizar um modo de trabalho errado, almejou a morte?
E como se faz para desejar a morte ou a vida?
Será que foram os excessos ou a falta que desenvolveu o câncer?
Perguntas, perguntas e mais perguntas? E, o que há na vida além da capacidade de nos perguntar? Ah, essa questão é fácil de responder, a capacidade de nos aceitar.
Que dona Norma vire Norma! E que todas juntas encontremos as respostas...

“ A vida nada mais é que um antes, um durante, um depois ... ”


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