Fiquei pensando como começar a
nossa conversa de hoje, para que você se sinta em casa ao entrar nesse blog, e,
queira fazer parte dele, devaneando comigo sobre o pensamento e os
questionamentos de cura cotidianos. De início quero apresentar-lhes uma antiga
amiga, hoje vamos chama-la de Dona Norma. Onde conheci? No ambulatório de mastologia (estou começando
a crer que esse será o meu habitat natural). Há quanto tempo nos conhecemos?
Ah, acho que há uma vida inteira...
O nosso primeiro contato foi
assim: Dona Norma bateu timidamente na porta do consultório e entrou com um ar
desconfiado e sapeca. Parecia uma criança.
Pude perceber que em suas mãos estavam alguns exames, provavelmente os de
rotina. Tenho o hábito de tentar descobrir a queixa dos pacientes antes que
eles possam me falar, porque assim, acredito que posso melhorar a minha
habilidade de observação. Ao ver dona Norma tive certeza que ela estava ali
apenas para os exames de seguimento (são exames que fazemos após o tratamento
completo do câncer, apenas para nos certificarmos que está tudo correndo bem). Para quebrar o silencio, tentei sorri-lhe
acolhedoramente, e, perguntei:
- Bom dia, o que posso fazer pela
senhora hoje?
Sem muito questionar, dona Norma
retribui o sorriso, e falou:
- Não sei doutora, foi o outro
médico que me mandou aqui. Terminei a minha décima segunda sessão de
quimioterapia, e, parece que tem um novo nódulo na axila direita! - E sem muita
cerimônia retirou o chapéu, e mostrou-me o couro cabeludo apenas com uma
penugem sutil, delicada...
Foi a primeira “peça que Dona
Norma me pregou”. Por um instante parei, e fiquei fitando-a nos olhos, queria
entender o que se passava naquela cabeça, queria entender, suas certezas, sua
fé na vida, seus medos. Ou os meus. E, simultaneamente,
queria ter um espelho em minha frente para perceber se estava conseguindo
lançar o olhar angelical e curioso que eu desejava possuir naquele momento.
Conversei com Dona Norma por uns
vinte minutos, nesse tempo ela me contou todas as dificuldades vivenciadas no
tratamento. Sorrindo, ela me falou que algumas vezes pensou em desistir. Disse que
perdeu a conta de quantas vezes olhava-se no espelho e não conseguia entender
quem era aquela estranha a sua frente. E eu chocada e com toda experiência de
um iniciante, tentei conforta-la falando do tratamento, mostrando que era possível
lutar e ter esperança. É incrível como algumas vezes a gente tenta desenvolver
uma empatia por alguém sem ao menos ter noção em que pensar. Hilária, a ousadia
de principiante.
Até que ela no ápice da sua
sabedoria, olhou para mim e falou:
- Não doutora, não estou falando
dessa doença! Falo que não me reconhecia antes. Tinha uma vida atribulada. Tinha
que acordar cedo, fazer comida, limpar a casa. Era uma loucura. Agora tenho
mais tempo para mim. Doente consigo viver!
Espera... Para tudo! Vocês
entenderam? Doente ela conseguia viver?! E saudável, fazia o que? Morria? Fiquei
boquiaberta ao escutar aquelas declarações de dona Norma. Que inversão de valores
é essa? O que vida mesmo? Quem em sã consciência começa a viver apenas depois
que descobre que tem câncer? E o medo? E as dúvidas? E o desconhecido? Será que
é tudo invenção de nossa mente? De onde vem essa fé na vida, ou, na morte?
Religião? Cultura? Mecanismo de defesa psicológico?
Não sei ao certo como, mas, Dona
Norma emanava uma energia tão positiva, que era de se fazer inveja. Mesmo
desenvolvendo um novo tumor, não tinha qualquer foco metastático pelo corpo. Que
processo de cura admirável é esse? Será que a vontade de viver é realmente o
que se conta nesse momento? Recuso-me a acreditar que alguém queira morrer.
Então, apenas o desejo não seria pouco?
Tenho a impressão que Dona norma
desenvolveu um comando que sinalizou para todas as células que deveriam
trabalhar adequadamente. Mas, se ela conseguiu desenvolver processo de cancerígeno é
porque num instante passado ela conseguiu sinalizar um modo de trabalho errado, almejou a
morte?
E como se faz para desejar a
morte ou a vida?
Será que foram os excessos ou a
falta que desenvolveu o câncer?
Perguntas, perguntas e mais
perguntas? E, o que há na vida além da capacidade de nos perguntar? Ah, essa questão
é fácil de responder, a capacidade de nos aceitar.
Que dona Norma vire Norma! E que todas
juntas encontremos as respostas...
“ A vida nada mais é que um
antes, um durante, um depois ... ”